Locked Out Of Heaven
“Convém suspeitar de todas as
doutrinas que são favorecidas pelas nossas paixões” - Hume
Hoje penso nas sagradas
doutrinas: psicanálise e socialismo/comunismo. Mas é de se desconfiar de todas
mesmo, como a crença na ciência pura, da qual eu sempre tive um pé
atrás, além de minha atual grande descoberta, a escola austríaca e o liberalismo.
Mesmo eu entrando agora e a passos comedidos nesse terreno, não posso me furtar a
concluir que são, como as demais, apaixonantes. Logo, tudo é passível de paixão,
mas só de saber disso, já me considero um pouquinho menos tolo e mais protegido. Triste é
descambar sempre pro ceticismo e niilismo!
Por que será que escrevi "triste" se esse niilismo quase sempre foi a minha viseira, e talvez ainda seja. Acho que cansei desse vazio e desesperança. Preciso de alguma doutrina, favorecida ou não pela minha paixão. Nem que seja o liberalismo tradicional. Todo homem precisa de teorias e de fôrmas pra informar o mundo. Outro dia me peguei pensando numa frase da Rapha: "O quebrou na hora de desinformar". Você nunca tinha pensado nisso, Fellipe: O pudim é informado, e sai da forma pra entrar na nossa boca faminta! rs
Outra do Hume: "Um homem
cavalgava com grande sofreguidão e levava o cavalo ao limite da exaustão. A
certa altura da viagem, ele parou por um instante para perguntar a alguém que
passava quanto tempo faltava até o lugar de destino. ‘São duas horas se voce
for mais devagar’, respondeu-lhe um camponês, ‘mas serão quatro se você
continuar com tamanha pressa’”.
Geralmente eu nao tenho pressa nenhuma, o que até atrapalha. Essa frase é mais pra justificar minha lentidão do que pra me estimular a ser mais lento e comedido. Se for mais calmo e parcimonioso eu mofo e apodreço... rs Preciso é de alguma pressa boa, da urgência da vida que nao me faça atrasar, mas sim chegar antes, sentir um gosto de novidade. Parar de ser só espectador.
Olha só que beleza, já descobri duas coisas que preciso, uma doutrina/ideologia (eu quero uma pra viver) e de urgência. Acho que não vai ser dessa vez, ainda vou viver sem essas coisas e sem muitas outras exigências para uma vida moderna saudável.
As citações de Hume foram extraídas da minha atual fonte de deleite: O Valor do Amanhã. Ontem, ou anteontem, descobri o motivo de eu gostar tanto do Giannetti. Vasculhando na net por trechos do livro (para justamente colá-los aqui nessa minha memória virtual), me deparei com um artigo dele na Folha. Frase de fã agora: ele simplesmente falou tudo, exatamente tudo, que eu penso sobre música! Com muito requinte, erudição, citaçoes, comparações, rigor, profundidade, clareza e, claro, perspicácia. Mas é o que sempre pensei e nunca consegui, mesmo porque nunca tentei, elaborar. Foi uma formidável surpresa. Segue o texto para que você releia aí agora, nesse chato futuro:
Que mistério
tem a palavra cantada?
Colunista da Folha - São Paulo, quinta, 6 de agosto de 1998
"Dai-me a castidade e a continência", orava o jovem Agostinho,
"mas não ma deis já". A memória insurreta de prazeres vividos não se
rende com facilidade aos ditames do córtex superior. O futuro santo católico
almejava o bem, mas sabia de perto o que era bom. Sua relação torturada e
ambígua com a música -"os prazeres do ouvido"- ilustra o dilema que
enfrentava.
A vontade consciente de Agostinho era manter o canto religioso no seu devido
lugar -como um instrumento acessório, sempre a serviço da fé e do culto divino.
O que o alarmava, porém, era constatar que volta e meia a gratificação dos
sentidos subjugava e vencia o sentimento de devoção.
Ao ouvir os hinos e cânticos da igreja entoados com suavidade e arte, Agostinho
se pilhava em meio a escapadas furtivas dos sentidos. Ele se rendia ao puro
prazer sensual da audição e assim acabava perdendo inteiramente de vista o
sentido religioso dos salmos.
O poder de sedução da melodia e do canto impregnava sutilmente a sua alma.
Quando ele se dava conta, era tarde: lá estava absorto, nas asas de deleites
inconfessáveis, involuntariamente entregue às delícias profanas de seu passado
libertino. Longe do bem, no colo do bom.
"Sinto que todos os afetos de minha alma encontram na voz e no canto as
suas próprias modulações, vibrando em razão de um parentesco oculto, para mim
desconhecido, que existe entre eles... Mas quando o cantar em si me sensibiliza
mais do que a verdade das palavras que se cantam, confesso com dor que pequei."
("Confissões", X, 33).
A pontaria do santo, como de costume, é certeira. O fantasma de um suposto
"pecado da lascívia musical" não precisa nos ocupar. Trata-se de uma
aberração platônica-cristã que a deliciosa tirada de William Blake fulmina com
o devido bom humor: "Assim como a lagarta seleciona as melhores folhas
para depositar seus ovos, o padre deposita suas pragas sobre os melhores
prazeres".
Ascetismo à parte, contudo, creio que a confissão de Agostinho nos diz algo
importante sobre os prazeres do ouvido. O que é feito da melodia e do canto
-vibrações sonoras que se propagam no ar- na vivência interna de quem ouve e se
encanta? A experiência agostiniana com a música sacra ajuda a identificar os
elementos básicos do prazer de ouvir.
Existe um ouvir consciente, possivelmente associado ao lado esquerdo do
cérebro, que acompanha o sentido das palavras cantadas e que busca seguir o fio
melódico da canção. Prevalece aqui a dimensão semântica do canto e a intenção
de entender a música de olhos abertos, sem perder as rédeas da atenção. É um
ouvir voluntário e concentrado no qual predominam a disposição alerta e o foco
intelectivo.
Existe, porém, uma outra forma de apreensão do canto que corre paralela ao
ouvir consciente e que muitas vezes acaba nos envolvendo e dominando por
completo. Trata-se de um ouvir da entrega -um ouvir secreto da sensibilidade em
estado puro que fala diretamente ao coração e que parece ter o dom de operar de
forma quase subliminar sobre o nosso sistema nervoso.
O que prevalece nesse ouvir sensual, não mediado pelas faculdades intelectivas,
é a força subterrânea e sedutora dos ritmos, das cadências, das inflexões e
entonações sutis, da modulação e do timbre vocal, em suma, de tudo aquilo que
nos franqueia o acesso a emoções e afetos adormecidos no recesso da alma e que
levava o devoto Agostinho ao desespero.
O prazer do canto melódico, acredito, tem muito a ver com o modo específico
pelo qual o ouvir consciente (semântico) e o ouvir da entrega (sensual) se
combinam em nossa experiência mental-auditiva.
Generalizar é impossível. A vivência subjetiva da música é algo tão
irredutivelmente pessoal e intransferível quanto um sonho ao ser sonhado. Só o
que me resta é tentar ilustrar, sem qualquer pretensão maior de objetividade, a
natureza desse processo a partir de minha própria experiência como ouvinte e fã
confesso da música brasileira.
Num polo estão os criadores-intérpretes que se dirigem predominantemente às
faculdades intelectivas. São os ídolos, por assim dizer, do lado esquerdo do cérebro.
As composições mais belas e inspiradas de Chico Buarque cantadas por ele mesmo
são talvez o melhor exemplo de canções que me encantam desse modo, ou seja,
pelos caminhos do ouvir consciente.
No outro polo estão aqueles que me pegam claramente pelo ouvir da entrega. São
vozes e sons que parecem ter o dom de render o lado direito do meu cérebro,
encharcando a mente de estranhas e indefiníveis delícias. Exemplo nítido desse
tipo de experiência no meu caso é o que acontece quando ouço e me deixo levar pelo
canto mágico e estranhamente sedutor de Luiz Melodia.
Mas o ponto mais alto do prazer de ouvir é quando aparece alguém capaz de
juntar as duas pontas. Alguém capaz de atacar, cercar e render simultaneamente,
com o seu canto e sonoridade, a inteligência alerta do ouvir consciente e a
imaginação sonhadora do ouvir da entrega.
Quando isso acontece, dá-se a rara alquimia de alguma coisa mais plena e
sublime: o cantar em si e a expressividade total do som me sensibilizam de uma
forma tão completa e intensa quanto a trilha melódica e o sentido poético da
palavra cantada.
Nomes? O mais sensato, talvez, fosse falar não em nomes, mas em momentos de
iluminação. Não vou me eximir, porém, de nomear aqueles que, para mim, melhor
ilustram o mistério e a fronteira de possibilidades da palavra cantada em nossa
língua.
Ciente de que cada brasileiro amante da música cultiva e defende a sua
constelação íntima de ídolos máximos, eis os santos de minha devoção: João
Gilberto, Caetano Veloso e Marina Lima.
O amor pela música, como qualquer forma de amor, jamais poderá ser
racionalmente explicado. Talvez chegue o dia em que os avanços da neurociência
nos mostrem tintim por tintim por que certas vozes e sons específicos fazem o
que fazem com o cérebro de cada um. O absurdo é supor que esse tipo de saber
objetivo e externo dará conta da vivência subjetiva e pessoal de quem ouve e se
encanta.
Quanto a mim, uma coisa é certa: ouvindo o recém-lançado "Pierrot do
Brasil" de Marina tenho a sorte e a felicidade de me sentir como se eu fosse
uma espécie de Agostinho pecador e desprovido de culpa. http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq06089816.htm
Sublime não?! Se eu gostar desse Pierrot do Brasil da Marina, não faltará mais nada, peço ele em casamento! rs Mas muito interessante essa do casamento de ideias. Desde que o vi pela primeira vez no sempre um papo, falando do Valor do Amanhã fiquei impressionado com a clareza dele e com o meu prazer em ouvir coisas que faziam muito sentido pra mim. Aí entrou o acaso, pois me deparei com esse livro num sebo! Muita coincidencia, pois nao entrava em sebos, por nao have-los em SD e por nao andar nada pelo centro de JF. Comprei e só estou lendo hoje, 7, 8 ou 9 anos depois...
O último capítulo que li também foi inteiramente ao encontro de minhas parcas e porcas ideias: sobre os índios! Primeiro porque ele citou esse contexto silvícola, sempre pertinente pra qualquer discussão humana. Segundo porque nao foi ingênuo, como já fui, de achar a oitava maravilha a sociedade indígena, e tratá-la de modo simplista. Ele expôs seus conflitos normais, mas claro, citando sua riqueza de fortes ideias primitivas que chacoalham nossa conjuntura atual. Em breve transcrevo aqui.
O último capítulo que li também foi inteiramente ao encontro de minhas parcas e porcas ideias: sobre os índios! Primeiro porque ele citou esse contexto silvícola, sempre pertinente pra qualquer discussão humana. Segundo porque nao foi ingênuo, como já fui, de achar a oitava maravilha a sociedade indígena, e tratá-la de modo simplista. Ele expôs seus conflitos normais, mas claro, citando sua riqueza de fortes ideias primitivas que chacoalham nossa conjuntura atual. Em breve transcrevo aqui.
PS: no início da semana era o assobio de moves like jagger, hoje foi o dia inteiro com a Locked out of heaven do Bruno Mars na cabeça! Chiclete puro! Cópiazinha de Police, mas, por que não, uma ótima música?!
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