Escravos do Mundo Livre

Esteta ou Asceta? Nada disso, no fundo: Divagações de um pateta...

sábado, 9 de junho de 2007

Literatus - Pavão Misterioso ou Necessidade Mórbida

(...)Encontrar sua voz particular é a grande tarefa do escritor, e não cumprir regras gramaticais, praticar um português impecável, ou exibir um estilo elegante. "Ninguém se torna um escritor sem conseguir, antes disso, ouvir a própria voz", diz o ensaísta inglês Alfred Alvarez em A voz do escritor...
Trata-se de uma experiência radical, que se prolonga por toda a vida e que, em alguns casos extremos, coloca a própria vida em risco. Pense-se na loucura amarga de Antonin Artaud, na solidão superlotada de Fernando Pessoa, nas vozes que perseguiam Virginia Woolf, na vida à deriva de Joseph Conrad. "Para um escritor, a voz é um problema que nunca o deixa em paz", diz Alvarez. Mais que problema, é um enigma, que nunca chega a resolver, e com o qual o escritor se vê obrigado a lidar por todos os seus dias. Como ouvir a própria voz? Não existem instrumentos, nem exercícios, ou mesmo rituais, que levem a isso. É coisa que não se ensina, que um escritor aprende consigo mesmo, ou não aprende.
Alerta Alvarez que ter uma voz não é a mesma coisa que ter um estilo. Isso, ter um estilo, que cheira mais à alta costura que a literatura, é coisa que qualquer escrevente pode cobiçar. Pior: aqueles que chegam a "ter um estilo", em grande parte dos casos, se asfixiam em sua própria couraça, o estilo se torna uma camisa-de-força. Até porque um estilo - como um penteado, ou uma marca de automóvel - adota-se, vem de fora. Um estilo é uma casca, uma performance que se aprecia, ou se rejeita, enquanto uma voz não chega a ser uma escolha, uma voz é uma maneira inconsciente de soar.
Encontra-se a própria voz pelos caminhos mais inesperados. Para ser escritor, William Faulkner teve de trabalhar como carpinteiro, pintor de paredes e chefe dos correios. Franz Kafka mofou, por anos a fio, em um escritório de seguros. Orides Fontela se viu com a miséria, a penúria mais extrema. Joseph Conrad levou uma dura vida de marujo. Jean Genet converteu-se em ladrão. François Villon, em assassino. José Saramago passou anos, décadas inteiras dirigindo jornais. Ernesto Sabato formou-se em física e matemática. Hilda Hilst se comunicou com espíritos através de ondas de rádio. Não existem caminhos retos que conduzam à literatura, eles são sempre tortos e movediços.
E o que distingue a voz própria? O fato de ela ser diferente de todas as outras, de não se parecer com nenhuma. Então, como se pode ensinar isso? Simplesmente não se pode ensinar. Pode-se, no máximo, atravessar experiências que favoreçam esse encontro. Experiências literárias, ou seja, leituras. Ler e escrever, e ler e escrever, não para acertar, mas para cavar. Experiências que expandam o olhar e ampliem o timbre da voz de quem escreve. Que alarguem os limites - chegamos à palavra chave - de sua imaginação.

(...)A formulação de Hemingway é clara: um escritor parte daquilo que carrega dentro de si e que só com muita dificuldade, e alguma decepção, consegue encontrar. A decepção é outro elemento chave. Como nunca escrevemos aquilo que planejamos, ou desejamos escrever, como nossa escrita está sempre muito aquém, ou muito além de nossos planos, o escritor precisa suportar o desapontamento, imenso, que a literatura provoca. Nenhum escritor está satisfeito com o que escreve. Assim como estranhamos nossa voz quando a ouvimos em um gravador, ou repudiamos nossa imagem quando a vemos numa fotografia, também assim nossa escrita parece, quase sempre, imperfeita e alheia. E aqui é preciso dizer com todas as letras: ela realmente é.

O real e a literatura

Outro argentino, Ricardo Piglia, aponta a relação estreita entre os movimentos do real (esse grande fundo de susto e desconhecimento que está encoberto pelo que chamamos, trivialmente, de realidade) e a literatura. Numa das cenas mais comoventes de Crime e castigo, lembra Piglia, Dostoiévski relata um sonho de seu protagonista, Raskólnikov. No pesadelo, Raskólnikov vê um grupo de camponeses alcoolizados que surram um cavalo até a morte. Em desespero, o rapaz se abraça ao cavalo agonizante e lhe dá um beijo. O romance de Dostoiévski é de 1866. Duas décadas depois, em 3 de janeiro de 1888, o filósofo Friedrich Nietzsche, um leitor apaixonado de Dostoiévski, repetiu (encenou) a cena de Raskólnikov. Numa rua de Turim, Itália, ele se abraçou chorando a um cavalo que um cocheiro castigava brutalmente, e depois o beijou. A citação de Dostoiévski, transformada em ato, é para alguns o início da loucura de Nietzsche; na verdade, é o apogeu de sua filosofia. E por que não dizer: de sua poesia.
No mesmo ano de 1888, surgem dois dos livros mais radicais de Nietzsche: O crepúsculo dos ídolos e O Anti-Cristo. Sua filosofia, embora talhada em forte lastro crítico, não se baseia em experiências livrescas, mas em uma dolorosa experiência pessoal. Em vez de manejar conceitos filosóficos, Nietzsche fez de suas idéias um teatro e, com isso, mais que fazer filosofia, fez poesia. Ele "sofria" de pensamentos, era objeto e também personagem (vítima) deles - exatamente como o impulso insano para escrever fez de Clarice Lispector não só escritora mas, sobretudo, uma personagem, uma vítima de sua literatura.
Franz Kafka gostava de citar um trecho da correspondência de Gustave Flaubert: "Vivo absolutamente como uma ostra. O meu romance é a rocha à qual me agrilhôo e não sei nada do que se passa no mundo". Em seus diários, Kafka anota uma idéia parecida: "Repouso em cima do meu romance tal como uma estátua que olha para a longe repousa sobre o soco". Tanto Flaubert, como Kafka se referem à relação enviesada, sinistra, que os escritores têm com a literatura. Uma relação de "má índole", que beira o desastre e a ruína - e as vidas tormentosas de Flaubert e de Kafka, dois homens que viveram para escrever, ilustram bem isso. Relação de agrilhoamento, em que atuam forças secretas como o desespero, a obsessão e a solidão. Que Kafka, em outra página de seus diários, descreve assim: "É num estado convulsivo de dor que se cria".


(...) Em vez de aplicar a norma, estimular a experiência da heresia que é a voz particular. No lugar de uma educação literária, melhor pensar em uma deseducação, em que o sujeito se dispa de ilusões, afaste-se dos automatismos, e desista de vez do desejo de brilhar e de agradar. Para, só então, sob sua conta e risco, chegar a si mesmo.
Volta-se inevitavelmente a Nietzsche: "Toda conquista, todo passo adiante na senda do conhecimento é fruto de um ato de valor, de dureza contra si mesmo, de própria depuração". O chegar a si, à própria voz, não é um embelezamento, ou uma performance, muito menos o fruto dourado de um adestramento. É um descascar-se, um escavar como o do escultor que corta e corta a sua pedra, até que, lá de dentro, com as mãos sangrando, tira sua arte. Mas não existem garantias - pois não estamos no reino pragmático das transações bancárias e dos acordos comerciais. Dessa experiência pode, até, sair um escritor. Nada garante que isso acontecerá. Mas, se não sair, ao menos sairão homens um pouco mais apegados a si mesmos, um pouco mais corajosos.

José Castello

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A verdade dói, mas quem sabe eu ñ sou masoquista? Diz aí:

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