A morte seguiu pois pelo corredor até à primeira porta à direita de quem
entra e por aí passou à sala de música, que outro nome não se vê que deva ser
dado à divisão de uma casa onde se encontra um piano aberto e um violoncelo, um
atril com as três peças da fantasia opus setenta e três de robert schumann,
conforme a morte pôde ler graças a um candeeiro de iluminação pública cuja
esmaecida luz alaranjada entrava pelas duas janelas, e também algumas pilhas de
cadernos aqui e além, sem esquecer as altas estantes de livros onde a
literatura tem todo o ar de conviver com a música na mais perfeita harmonia, que
hoje é a ciência dos acordes depois de ter sido a filha de ares e afrodite.
Por um instante a morte
soltou-se a si mesma, expandindo-se até às paredes, encheu o quarto todo e
alongou-se como um fluido até à sala contígua, aí uma parte
de si deteve-se a olhar o caderno que estava aberto sobre uma cadeira, era a
suite número seis opus mil e doze em ré maior de johann sebastian bach composta
em cöthen e não precisou de ter aprendido música para saber que ela havia sido escrita,
como a nona sinfonia de beethoven, na tonalidade da alegria, da unidade entre
os homens, da amizade e do amor. Então aconteceu algo nunca
visto, algo não imaginável, a morte deixou-se cair de joelhos, era toda ela,
agora, um corpo refeito, por isso é que tinha joelhos, e pernas, e pés, e
braços, e mãos, e uma cara que entre as mãos se escondia, e uns ombros que
tremiam não se sabe porquê, chorar não será, não se pode pedir tanto a quem
sempre deixa um rasto de lágrimas por onde passa, mas nenhuma delas que seja sua.
Assim como
estava, nem visível, nem invisível, nem esqueleto, nem mulher, levantou-se do
chão como um sopro e entrou no quarto. O homem não se tinha mexido. A morte
pensou, Já não tenho nada que fazer aqui, vou-me embora, nem valia a pena ter vindo
só para ver um homem e um cão a dormirem, talvez estejam a sonhar
um com o outro, o homem com o cão, o cão com o homem, o cão a sonhar que já é
manhã e que está a pousar a cabeça ao lado da cabeça do homem, o homem a sonhar
que já é manhã e que o seu braço esquerdo cinge o corpo quente e macio do cão e
o aperta contra o peito. Ao lado do guarda-roupa encostado a porta que daria acesso
ao corredor está um sofá pequeno onde a morte se foi sentar. Não o havia
decidido, mas foi-se sentar ali, naquele canto, talvez por se ter lembrado do
frio que a esta hora fazia na sala subterrânea dos arquivos. Tem os olhos à
altura da cabeça do homem, distingue-lhe o perfil nitidamente desenhado sobre o
fundo de vaga luminosidade laranja que entra pela janela e repete consigo mesma
que não há nenhum motivo razoável para que continue ali, mas imediatamente
argumenta que sim, que há um motivo, e forte, porque esta é a única casa da
cidade, do país, do mundo inteiro, em que existe uma pessoa que está a
infringir a mais severa das leis da natureza, essa que tanto impõe a vida como
a morte, que não te perguntou se querias viver, que não te perguntará se queres
morrer.