Escravos do Mundo Livre

Esteta ou Asceta? Nada disso, no fundo: Divagações de um pateta...

terça-feira, 26 de junho de 2007

Ria e o mundo rirá com você. Chore e chorará sozinho.


Édipo arranca os olhos, Oh Dae-Su arranca a língua. O primeiro via, mas não bastou ver para evitar seu infortúnio, o segundo falava, mas não tomou cuidado com o que dizia e pagou um alto preço. Os deuses se vingam, os humanos também. Em Old Boy, uma tragédia moderna, há o reconhecimento, a peripécia e a catástrofe, mas e a catarse? A catarse é oblíqua, enviesada, talvez dupla. Como não existe antagonista, no sentido vilonesco, como prega a rasa Hollyhood, a catarse pode ser sentida tanto por Oh Dae-Su, quanto pelo seu aprisionador.

O filme é visceral, com belas e aterrorizantes cenas. É também, um filme sobre aquelas coisas simples, que tomamos como insignificantes para nós, mas que podem ser uma infelicidade insuportável para os outros. Conselho: assista duas vezes e perceba o que você sente na segunda vez, principalmente a partir da cena em que a mocinha canta a música para o amor...


Depois de Old Boy, a vingança de Beatrix Kiddo em Kill Bill até que não parece lá grande coisa.” - (http://pulseluwig.blogspot.com/2005/12/ria-e-o-mundo-rir-com-voc-chore-e.html)

sábado, 9 de junho de 2007

Literatus - Pavão Misterioso ou Necessidade Mórbida

(...)Encontrar sua voz particular é a grande tarefa do escritor, e não cumprir regras gramaticais, praticar um português impecável, ou exibir um estilo elegante. "Ninguém se torna um escritor sem conseguir, antes disso, ouvir a própria voz", diz o ensaísta inglês Alfred Alvarez em A voz do escritor...
Trata-se de uma experiência radical, que se prolonga por toda a vida e que, em alguns casos extremos, coloca a própria vida em risco. Pense-se na loucura amarga de Antonin Artaud, na solidão superlotada de Fernando Pessoa, nas vozes que perseguiam Virginia Woolf, na vida à deriva de Joseph Conrad. "Para um escritor, a voz é um problema que nunca o deixa em paz", diz Alvarez. Mais que problema, é um enigma, que nunca chega a resolver, e com o qual o escritor se vê obrigado a lidar por todos os seus dias. Como ouvir a própria voz? Não existem instrumentos, nem exercícios, ou mesmo rituais, que levem a isso. É coisa que não se ensina, que um escritor aprende consigo mesmo, ou não aprende.
Alerta Alvarez que ter uma voz não é a mesma coisa que ter um estilo. Isso, ter um estilo, que cheira mais à alta costura que a literatura, é coisa que qualquer escrevente pode cobiçar. Pior: aqueles que chegam a "ter um estilo", em grande parte dos casos, se asfixiam em sua própria couraça, o estilo se torna uma camisa-de-força. Até porque um estilo - como um penteado, ou uma marca de automóvel - adota-se, vem de fora. Um estilo é uma casca, uma performance que se aprecia, ou se rejeita, enquanto uma voz não chega a ser uma escolha, uma voz é uma maneira inconsciente de soar.
Encontra-se a própria voz pelos caminhos mais inesperados. Para ser escritor, William Faulkner teve de trabalhar como carpinteiro, pintor de paredes e chefe dos correios. Franz Kafka mofou, por anos a fio, em um escritório de seguros. Orides Fontela se viu com a miséria, a penúria mais extrema. Joseph Conrad levou uma dura vida de marujo. Jean Genet converteu-se em ladrão. François Villon, em assassino. José Saramago passou anos, décadas inteiras dirigindo jornais. Ernesto Sabato formou-se em física e matemática. Hilda Hilst se comunicou com espíritos através de ondas de rádio. Não existem caminhos retos que conduzam à literatura, eles são sempre tortos e movediços.
E o que distingue a voz própria? O fato de ela ser diferente de todas as outras, de não se parecer com nenhuma. Então, como se pode ensinar isso? Simplesmente não se pode ensinar. Pode-se, no máximo, atravessar experiências que favoreçam esse encontro. Experiências literárias, ou seja, leituras. Ler e escrever, e ler e escrever, não para acertar, mas para cavar. Experiências que expandam o olhar e ampliem o timbre da voz de quem escreve. Que alarguem os limites - chegamos à palavra chave - de sua imaginação.

(...)A formulação de Hemingway é clara: um escritor parte daquilo que carrega dentro de si e que só com muita dificuldade, e alguma decepção, consegue encontrar. A decepção é outro elemento chave. Como nunca escrevemos aquilo que planejamos, ou desejamos escrever, como nossa escrita está sempre muito aquém, ou muito além de nossos planos, o escritor precisa suportar o desapontamento, imenso, que a literatura provoca. Nenhum escritor está satisfeito com o que escreve. Assim como estranhamos nossa voz quando a ouvimos em um gravador, ou repudiamos nossa imagem quando a vemos numa fotografia, também assim nossa escrita parece, quase sempre, imperfeita e alheia. E aqui é preciso dizer com todas as letras: ela realmente é.

O real e a literatura

Outro argentino, Ricardo Piglia, aponta a relação estreita entre os movimentos do real (esse grande fundo de susto e desconhecimento que está encoberto pelo que chamamos, trivialmente, de realidade) e a literatura. Numa das cenas mais comoventes de Crime e castigo, lembra Piglia, Dostoiévski relata um sonho de seu protagonista, Raskólnikov. No pesadelo, Raskólnikov vê um grupo de camponeses alcoolizados que surram um cavalo até a morte. Em desespero, o rapaz se abraça ao cavalo agonizante e lhe dá um beijo. O romance de Dostoiévski é de 1866. Duas décadas depois, em 3 de janeiro de 1888, o filósofo Friedrich Nietzsche, um leitor apaixonado de Dostoiévski, repetiu (encenou) a cena de Raskólnikov. Numa rua de Turim, Itália, ele se abraçou chorando a um cavalo que um cocheiro castigava brutalmente, e depois o beijou. A citação de Dostoiévski, transformada em ato, é para alguns o início da loucura de Nietzsche; na verdade, é o apogeu de sua filosofia. E por que não dizer: de sua poesia.
No mesmo ano de 1888, surgem dois dos livros mais radicais de Nietzsche: O crepúsculo dos ídolos e O Anti-Cristo. Sua filosofia, embora talhada em forte lastro crítico, não se baseia em experiências livrescas, mas em uma dolorosa experiência pessoal. Em vez de manejar conceitos filosóficos, Nietzsche fez de suas idéias um teatro e, com isso, mais que fazer filosofia, fez poesia. Ele "sofria" de pensamentos, era objeto e também personagem (vítima) deles - exatamente como o impulso insano para escrever fez de Clarice Lispector não só escritora mas, sobretudo, uma personagem, uma vítima de sua literatura.
Franz Kafka gostava de citar um trecho da correspondência de Gustave Flaubert: "Vivo absolutamente como uma ostra. O meu romance é a rocha à qual me agrilhôo e não sei nada do que se passa no mundo". Em seus diários, Kafka anota uma idéia parecida: "Repouso em cima do meu romance tal como uma estátua que olha para a longe repousa sobre o soco". Tanto Flaubert, como Kafka se referem à relação enviesada, sinistra, que os escritores têm com a literatura. Uma relação de "má índole", que beira o desastre e a ruína - e as vidas tormentosas de Flaubert e de Kafka, dois homens que viveram para escrever, ilustram bem isso. Relação de agrilhoamento, em que atuam forças secretas como o desespero, a obsessão e a solidão. Que Kafka, em outra página de seus diários, descreve assim: "É num estado convulsivo de dor que se cria".


(...) Em vez de aplicar a norma, estimular a experiência da heresia que é a voz particular. No lugar de uma educação literária, melhor pensar em uma deseducação, em que o sujeito se dispa de ilusões, afaste-se dos automatismos, e desista de vez do desejo de brilhar e de agradar. Para, só então, sob sua conta e risco, chegar a si mesmo.
Volta-se inevitavelmente a Nietzsche: "Toda conquista, todo passo adiante na senda do conhecimento é fruto de um ato de valor, de dureza contra si mesmo, de própria depuração". O chegar a si, à própria voz, não é um embelezamento, ou uma performance, muito menos o fruto dourado de um adestramento. É um descascar-se, um escavar como o do escultor que corta e corta a sua pedra, até que, lá de dentro, com as mãos sangrando, tira sua arte. Mas não existem garantias - pois não estamos no reino pragmático das transações bancárias e dos acordos comerciais. Dessa experiência pode, até, sair um escritor. Nada garante que isso acontecerá. Mas, se não sair, ao menos sairão homens um pouco mais apegados a si mesmos, um pouco mais corajosos.

José Castello

CADA UM SABE A DOR E A DELÍCIA DE SER O QUE É

Já me sinto melhor. Nem todo mundo nasce Mozart, Picasso, Marlon Brando, ou Machado. Nasci Eu, e como diz Caetano, cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é. Levo o leve e o love, o peso e o preço da quimera encrustada na cabeça. Não conquisto, não desisto. É febre, é fogo, é fato, é foda. Não estou só, não sou tradutor, mas entendo à minha maneira a língua secreta dos espelhos. Borges e Baudelaire me ajudam a entender. Consolo? Alívio? Mentiras? Talvez liberdade... A dor dói assim:

Natureza, feiticeira sem piedade, rival sempre vitoriosa, deixa-me! Cessa de provocar os meus desejos e o meu orgulho! O estudo da beleza é um duelo em que o artista grita de pavor antes de ser vencido. (O confiteor do artista, do livro O Spleen de Paris de Charles Baudelaire)


O louco e a Vênus

Dia admirável! O vasto parque desfalece sob o olhar abrasante do Sol, como a juventude sob o império do Amor. O êxtase universal das coisas não se manifesta por nenhum bulício; as próprias águas estão como adormecidas. Bem diversa das festas humanas - reina aqui uma orgia silenciosa. Dir-se-ia que uma luz cada vez mais intensa faz brotar dos objetos cintilações cada vez mais vívidas, que as flores excitadas ardem no desejo de rivalizar com o azul do céu pela energia das suas cores, e que o calor, tornando visíveis os perfumes, os faz subir para o Sol como foguetes. Entretanto, nesse universal regozijo, divisei um ser aflito. Aos pés de uma Vênus colossal, um desses bobos artificiais, um desses bufões voluntários encarregados de fazer rir os soberanos quando o Remorso ou o Tédio os atormenta, - envolvido num traje vistoso e ridículo, toucado de chifres e de guizos, ajoelhando ante o pedestal, ergue os olhos cheios de lágrimas para a imortal Divindade. E os seus olhos dizem: - "Eu sou o último e o mais solitário dos homens, privado do amor e da amizade, muito inferior, neste ponto, ao mais imperfeito dos animais. E todavia sei-me capaz, eu também, de compreender e sentir a Beleza imortal! Ah, Deusa! Tende piedade da minha tristeza e da minha loucura!". Mas a Vênus implacável olha não sei para quê de longínquo com os seus olhos de mármore.
Charles Baudelaire

quinta-feira, 7 de junho de 2007

Maldição Sinestésica

Por onde repousam meus olhos, enxergam filmes. Tenho visto longas em toda parte. Até o olhar mais distraído cria cenas belíssimas, planos inefáveis. O ângulo perfeito pra espreitar a mulher-menina e adivinhar seus desejos num close. A mimese perfeita. A emoção despertando transcendência. A catarse. O universo paralelo que desvela o nosso, a vida enquadrada, mas livre, na cena derradeira. Tudo isso, as mais lindas imagens conjugadas a simétricos sons, são forjadas em minha cabeça - espelho. Meus ouvidos ouvem músicas sem parar. Na rua, entre as pessoas, imóvel, durante as refeições. Harmonias belíssimas, com pausas, recuos e avanços em arranjos escutados por inteiro. No barulho, no silêncio, ouço músicas em seus detalhes mais secretos. Contam histórias, desvendam mundos, revelam segredos que só os sons dizem para mentes sensíveis. Minha cabeça pensa romance. Meu passado é narrado em terceira pessoa a mim mesmo. O pensamento lê contos em todo canto. Minha vida é ficção em prosa e verso. Cada segundo é descrito com esmero. A estética é tecida a cada palavra, maturada em seu reino, onde o tempo não é perverso e ligeiro como o nosso. Penso literatura. Clássicos nascem lidos nas torrentes de meu pensamento. Os elos, ora firmes ora frouxos, são correntes que contam as mais belas estórias. O que escapou aos gregos, aos modernos e pós-modernos eu trago aqui dentro, acabado e refeito a cada instante. O por vir é talhado em minha mente. Vejo cores. Sinto sabores. Cheiro cheiros. Toco texturas. Sempre, a cada instante. É terrível. É uma maldição. Por que não consigo traduzir? Detesto guardar, acumular isso em mim. Esquecer o eterno, o inesquecível. Penso como Salieri*, maldizendo deus por tê-lo dotado de verdadeiro amor pela música e tê-lo negado o talento para realiza-la. Choro como quem perde o amor, para sempre... Esses segredos me dão prazer e dor. Torturam-me surdamente. Gero o não nascido. É um triste parto e a dor do aborto é só, só minha.

* Antonio Salieri é um personagem angustiado do filme Amadeus de Milos Forman. Ele tem uma relação de respeito e desprezo por Mozart. Ele inveja e admira o então jovem compositor. Todos temos um pouco de Salieri, mas eu espero ter exorcizado-o aí em cima. Belíssimo filme!

quarta-feira, 6 de junho de 2007

Memória virtual para Borges

Israel

Um homem encarcerado e enfeitiçado,
um homem condenado a ser a serpente
que guarda um ouro infame,
um homem condenado a ser Shylok,
um homem que se inclina sobre a terra
e que sabe que esteve no Paraíso,
um homem velho e cego que há de destruir
as colunas do templo,
um rosto condenado a ser máscara,
um homem que apesar dos homens
é Spinoza e o Baal Shem e os Cabalistas,
um homem que é o Livro,
um homem que louva do abismo
a justiça do firmamento,
um advogado ou um dentista
que dialogou com Deus na montanha,
um homem condenado a ser o escárnio,
a abominação, o judeu,
um homem lapidado, incendiado
e atirado em câmaras letais,
um homem que se obstina em ser imortal
e que agora voltou à sua batalha,
à violenta luz da vitória,
formoso como um leão ao meio-dia.

Milonga De Manuel Flores

Manuel Flores vai morrer
Isso é moeda corrente
Morrer é um costume
Que sabe ter toda a gente

Amanhã virá a bala
E com a bala o olvido
Disse o sábio Merlin
Morrer é haver nascido

Apesar disso me dói
Despedir-me da vida
Essa coisa tão de sempre
Tão doce e tão conhecida

Olho na alba minhas mãos
Olha nas mãos as veias
Com estranheza as contemplo
Como se fossem alheias

Quanto coisa em seu caminho
Esses olhos terão visto
Quem sabe o que verão
Depois que me julgue Cristo

Manuel Flores vai morrer
Isso é moeda corrente
Morrer é um costume
Que sabe ter toda a gente

Invocação a Joyce

Dispersos em dispersas capitais,
Solitários e muitos
Brincávamos de ser o primeiro Adão
Que nomeou as coisas.
Pelos vastos declives da noite
Que lindam com a aurora
Buscamos (lembro ainda) as palavras
Da lua, da morte, da manhã
E dos outros hábitos do homem
Fomos o imagismo, o cubismo,
Os conventículos e seitas
Que as crédulas universalidades veneram
Inventamos a falta de pontuação,
A omissão de maiúsculas,
As estrofes em forma de pomba
Dos bibliotecários de Alexandria.
Cinza, a faina de nossas mãos
E um fogo ardente nossa fé.
Tu, enquanto,
Nas cidades do desterro,
Naquele desterro que foi
Teu aborrecido e eleito instrumento,
A arma de tua arte,
Construídas teus árduos labirintos,
Infinitesimais e infinitos,
Admiravelmente mesquinhos,
Mais populosos que a história.
Teremos morrido sem haver divisado
A biforme fera ou a rosa
Que são o centro de teu dédalo,
Mas a memória tem seus talismãs,
Seus ecos de Virgílio,
E assim nas ruas da noite perduram
Teus infernos esplêndidos,
Tantas cadências e metáforas tuas,
Os ouros de tua sombra,
Que importa nossa covardia se há na terra
Um só homem valente,
Que importa a tristeza se houve no tempo
Alguém que disse feliz,
Que importa minha perdida geração,
Esse vago espelho,
Se teus livros a justificam
Eu sou os outros. Eu sou todos aqueles
que teu rigor obstinado resgatou.
Sou os que não conheces e os que salvas.